Mateus Silva Figueiredo
Acordei com um barulho alto. Era cedo, bem cedo. O dia mal havia raiado, e poucos pássaros cantavam lá fora. Corri para o quarto de Lourenço, de onde o barulho parecia ter vindo, para encontrá-lo no meio de livros no chão, almofadas jogadas, a cama desarrumada. Ele estava ofegante.
- O que você está fazendo?
-Nada! - respondeu, gritando – porque nada disso faz a menor diferença!
Peguei dois livros do chão e os recoloquei na estante.
-Como assim, não faz diferença?
-Não faz! Não importa o que eu faça - disse, visivelmente transtornado, falando cada vez mais alto –porque no final vai dar tudo na mesma.
- Deixa de bobeira e me ajuda a arrumar essa bagunça.
- Não! – gritou, arremessando uma almofada que não me acertou por centímetros – Você não entende, não é? Nada disso é real. Nada. Nada...
Ele olhava em volta, parecendo cansado, inconformado, como um animal encurralado, tentando encontrar uma rota de fuga.
-É lógico que é real!
-Não é, não é, não é!
- Deixa de ser bobo.
- Bobo? Bobo? – Ele gritava cada vez mais alto, beirando o pânico, me fitando com os olhos transbordando de fúria, não de mim, mas do mundo. – É, eu acho que eu sou bobo sim. Eu tenho que ser muito bobo pra ter acreditado em todas as mentiras que já me contaram.
- Mentiras? Mentiras que quem contou para você?
- Quem, ora essa, quem. – Lourenço debochava de mim, sem sair do lugar. Naquele local ele estava seguro, dentro de sua bolha de medo. Se se mexesse, suas defesas cairiam. – Todo mundo! Todas as pessoas dessa droga de mundo! Os professores, os vendedores, os parentes, os colegas de trabalho. Todas as pessoas que cruzam a rua sem fazer a menor diferença. Para que elas passam? Quer saber, não responda. Cada resposta é apenas mais uma mentira.
-Lu...
- E a televisão é a pior mentira de todas. Canal depois de canal, cada um com mais mentiras do que o outro. Todas as pessoas da televisão estão lá para mentir para nós. Elas ganham a vida mentindo! Mentindo!
Só então reparei na televisão, que costumava ficar em cima de uma mesa, derrubada no chão, cercada de cacos de vidro. O metal parecia ter sido socado uma ou duas vezes.
-Eu não entendo...
- É lógico que não entende. De todas as pessoas, porque você entenderia? Não responda. Mas você sabe que é verdade. No fundo, você concorda com todas as coisas que eu disse. Você sabe, você sempre soube. Mas a gente esquece. Eles fazem a gente se esquecer da verdade, sufocam-na com mentiras. Eles escondem a única verdade. A única verdade, é que todo o resto é mentira.
- Lu, olha pra mim. – Me aproximei dele, e segurei suas mãos. Os punhos cerrados se soltaram um pouco, mas a cara continuava franzida. Olhei bem em seus olhos, esfregando as mãos com os polegares. – Esqueça todo o resto. Esqueça, por um momento, todas as outras coisas. Você pode fazer isso, por mim?
Ele olhava para mim, com os olhos cansados, e o rosto já um pouco mais calmo. Dessa vez, quem não entendia era ele.
- Posso – disse, depois de um tempo.
- Feche os olhos.
- Tudo bem.
- Você sente as minhas mãos?
- Que tipo de pergunta é essa?
- Feche os olhos. Apenas responda. Você sente as minhas mãos, nesse exato momento?
- Sim, é claro.
- Você consegue – dizia calmamente – ouvir a minha voz? Esqueça o barulho dos carros na rua, esqueça os pássaros cantando. Você consegue ouvir a minha voz?
- Sim, eu consigo.
Coloquei a mão direita dele em meu peito, sobre o coração.
- Você consegue sentir as batidas do meu coração?
- Sim.
Ele estava bem mais calmo. Me aproximei dele e dei um beijo em sua boca.
- E isso, você sentiu?
- Sim.
- Abra os olhos.
Abriu os olhos devagar, com o olhar de um soldado depois de um longo dia de batalha, feliz com o descanso. Estavam meio molhados.
- Escute. Não importa se não for verdade. Não importa se o mundo for feito de mentiras mal contadas. Não faz diferença se o jornal traz notícias boas ou ruins, se os pássaros cantam ou não, se os professores só mandam a gente decorar mentiras. Eu estou aqui, e você está aqui. Eu te amo, e é só isso que importa. Tá bom?
Ele ficou um ou dois minutos em silêncio, só olhando para mim.
- Eu também te amo.
- Agora o que você me diz de arrumar essa bagunça?
Depois de duas ou três guerras de travesseiro, o quarto estava como antes, com exceção à televisão. Nós dois concordamos que a gente estava precisando ler mais.
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