Anotações: "Democracia um conceito em disputa", de Carlos Nelson Coutinho

 

COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia um conceito em disputa. 2008, p. 1-9. Disponível em: https://educacao.mppr.mp.br/arquivos/File/gestao_democratica/kit2/democracia_um_conceito_em_disputa.pdf. Acesso em: 22 fev. 2021.

Carlos Nelson Coutinho (Itabuna, 28 de junho de 1943 - Rio de Janeiro, 20 de setembro de 2012) foi um filósofo político, ensaísta e tradutor brasileiro.

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Democracia: um conceito em disputa

Liberalismo representa a burguesia como nova classe social, e como classe social dominante. Surge se opondo ao absolutismo. Portanto, inicialmente não discute a democracia. John Locke (1632-1704).

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) critica o liberalismo e propõe uma sociedade democrática e popular. Suas ideias inspiram os jacobinos, liderados por Robespierre (1758-1794) e Saint-Just (1767-1794). Inspiraram também comunistas, como Grachus Babeuf (1760 – 1797), condenado a morte por um governo dito liberal. As camadas populares entram na arena política e começam a disputar com os liberais.

Benjamin Constant (Suíça, 1767-1830) é um liberal que lutou contra o absolutismo. Ele escreve que a liberade proposta por Rousseau e pelos jacobinos seria a liberdade do mundo antigo, que é a liberdade de participar do governo. Constant defende a liberdade moderna de eleger representantes que ocupam o governo, focando a vida privada. Coutinho afirma que essa é a diferença entre a liberdade democrática (participar do governo) e a liberdade liberal (eleger o governo). Constant se coloca contra a democracia, pois ela seria algo do passado. Era contrário ao sufrágio universal e acreditava que “só deve votar e ser votado o proprietário, já que, sendo ele dono de uma parte da nação, seria o único a se interessar efetivamente pelo seu bem-estar”.

Alexis de Tocqueville (1805-1859) é um liberal que percebeu que a democracia é irreversível e inevitável, mas acredita que tem efeitos negativos na sociedade. Quando todos forem iguais haveria uma ditadura da maioria, esmagando as liberdades individuais. Para Toqueville, é preciso garantir as liberdades individuais, e “o fortalecimento do liberalismo é visto como um remédio contra os males da democracia”.

Gaetano Mosca (1848-1941) não teme a tirania da maioria pois acredita que não existe maioria como sujeito político. Quando um grupo diz representar o povo, isso é apenas uma forma de se legitimar no poder enquanto classe dirigente. Se opõe à democracia e ao sufrágio universal.

Até Gaetano Mosca, os liberais não eram hipócritas. Eram abertamente contra a democracia e contra  o sufrágio universal.

Movimento cartista (Inglaterra, 1837 – 1848) lutou pela limitação da jornada de trabalho e pelo sufrágio universal. Demorou para que o governo liberal cedesse esses direitos. Na década de 1860 se limitou a jornada de trabalho, e em 1918 houve o sufrágio para mulheres na Inglaterra.

Os liberais também lutaram contra o direito dos trabalhadores de se organizarem e formarem sindicatos. Na França, o direito de organização e de greve só foi reconhecido aos trabalhadores só foi reconhecido na década de 1870, após a Comuna de Paris.

O ideário liberal inicialmente não abrangia esses direitos, que foram sendo impostos gradualmente. Os liberais, então, precisaram repensar “como controlar esse avanço democrático e submetê-lo à lógica da reprodução capitalista?”

Para Georg Lukács “a democracia deve ser entendida não como algo estático, mas como um processo”. Portanto, seria mais adequado falar em “democratização”, sempre renovável e passível de aprofundamento.

Havia pouca participação popular na política. Alguns socialistas, como Auguste Blanqui, acreditavam que a revolução proletária deveria ser feita por uma minoria revolucionária agindo em nome do povo, o que Coutinho caracteriza como uma oligarquia. Contraposto a essa proposta está o processo de democratização, ou a socialização da política, que envolve a crescente participação popular na política. No entanto, essa participação popular choca com o estado capitalista em que as coisas se encontravam, de uma elite controlando o Estado. Isso só pode ser superado com a socialização do poder, ou seja, “a plena realização da democracia implica a superação da ordem social capitalista”. Há, além da socialização dos meios de produção, também a socialização do poder. Isso choca-se com a lógica do capital. “ processo de ampliação de democracia implica choques permanentes com a lógica privatista do capital”.

Como o capital luta contra essa democratização, e tenta manter o seu poder? Uma delas é a ditadura, como o nazismo na Alemanha, fascismo na Itália, ditaduras militares na América Latina. A classe burguesa abandona qualquer aparência liberal e se choca totalmente contra a democracia para proteger o capital.

Outra forma de lutar contra a democratização é mais sutil. O capital tenta assimilar elementos isolados da democracia e colocá-los a serviço do capital.

Bonapartismo: caracterizado pela “presença de formas personalizadas de poder, expressas na figura de um líder carismático que diz representar os interesses do povo e/ou que se apresenta como um árbitro entre as classes sociais”. Não necessariamente uma ditadura.

O liberalismo utiliza o sufrágio universal para manter o capital, contra o processo de democratização. “o sufrágio universal deixa de ser uma arma potencial de emancipação da classe trabalhadora e se converte num instrumento de legitimação de chefes carismáticos que, dizendo falar em nome do povo, na verdade representam os interesses de quem pretende conservar a ordem capitalista.”

Domenico Losurdo estuda essa utilização do sufrágio para legitimar um governo contrário à democracia.

Max Weber propõe que o presidente deve ser eleito num sufrágio direto e universal, mesmo em governos parlamentaristas. Weber chama esse processo de “democracia cesarista”, em que o líder carismático pudesse se situar acima dos conflitos de classe e representar toda a nação e bater de frente com o Parlamento. No entanto, Coutinho chama esse processo de “ditadura legitimada pelo sufrágio universal”. Losurdo chama esse tipo de governo de “bonapartismo soft”, em oposição a um autoritarismo aberto. Com essa estratégia, a burguesia esvazia o significado e potencial revolucionário do sufrágio universal.

Joseph A. Schumpeter (assim como Mosca) acredita que a política é feita por elites e minorias, e que o povo “não consegue juntar razão e interesse, ou seja, é incapaz de definir racionalmente o seu real interesse e, por isto, seu voto é sempre manipulado pelas próprias elites”. Schumpeter enxerga a democracia de maneira positiva e minimalista. Se houver eleições periódicas e competitivas, é democracia.  Outros pensadores seguem essa mesma linha. “Democracia passa a ser, assim, o cumprimento de alguns procedimentos formais — as famosas regras do jogo—, sendo o principal deles a existência de eleições periódicas, nas quais o povo (de resto, segundo estes liberais, sem muita consciência do que está fazendo) escolhe entre elites.”

Rousseau discorda de que isso seja democracia. Defende uma democracia direta, não uma democracia representativa. O povo é soberano, não o governo. Rosseau defende que “não há democracia efetiva onde existe excessiva desigualdade material entre os cidadãos”, assim, não é possível haver capitalismo e democracia ao mesmo tempo. A desigualdade material impede que haja uma igualdade no poder de decisão numa eleição – donos de empresas de comunicação têm poder muito maior de influenciar o resultado da eleição (através dos votos dos telespectadores) do que cidadãos comuns.

“a disputa ideológica moderna não tem tanto como objeto a oposição explícita entre democracia e antidemocracia, como ocorria até meados do século XX, mas sim a oposição entre diferentes conceitos de democracia”. Portanto, “ quando nos dispomos hoje a examinar uma situação concreta para avaliá-la como democrática ou não, temos de saber previamente qual conceito de democracia estamos utilizando”.

“Portanto, não basta estatuir regras do jogo. Temos aqui, certamente, uma condição necessária, mas que está longe de ser suficiente para que exista efetivamente uma democracia. Para isso, é preciso, por um lado, que tais regras sejam efetivamente democráticas, ou seja, que contemplem a presença não só de formas de representação, mas também de institutos de democracia direta, participativa; e, por outro, que existam também as condições jurídicas e econômico-sociais para que tais regras sejam efetivamente cumpridas.  Temos então que a definição minimalista de democracia é uma mera ideologia, cujo objetivo principal é esvaziar a democracia do caráter subversivo e anticapitalista que, tanto teórica como praticamente,  caracterizou-a desde sua origem.”

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Análise (com base no guia da disciplina de EDU612/UFV)

Autor: Carlos Nelson Coutinho (Itabuna, 28 de junho de 1943 - Rio de Janeiro, 20 de setembro de 2012) foi um filósofo político, ensaísta e tradutor brasileiro.
Conceitos que o autor traz
: Liberalismo. Democracia. Bonapartismo.
Fontes utilizadas para discussão
: Textos de filósofos e pensadores ao longo da história. Autores como Jean Jacques Rosseau, John Locke, Max Weber, Domenico Losurdo, Joseph A. Schumpeter, etc.
Tema discutido:
democracia. Como a democracia era tratada no século XIX por pensadores liberais e socialistas. Quais os critérios para que algo seja considerado uma democracia. Como o liberalismo se apropriou de características da democracia e os utilizou para manter a ordem vigente. Como diferentes conceitos a respeito do que é democracia se aplicam a situações mais ou menos abrangentes, e geram consequências diferentes.
Metodologia usada pra a discussão:
citar diversos pensadores. Contextualizar o pensamento deles geograficamente, historicamente, politicamente. Confrontar pensamentos uns com os outros para demonstrar falhas e contradições.
Como o texto é escrito (para aprender como escrever):
texto corrido, sem seções. Parágrafos bem delimitados, com uma ideia principal em cada um deles.

(Anotações: Mateus S. Figueiredo)

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