Mundo

(Trecho do livro Maya, de Jostein Gaarder)

— Bobagem. Você não tem a menor idéia do que estou falando. Não estava lá...
Eu estou em toda parte, Frank. Só existe um eu.
— Faça-me o favor de parar já com essa besteira!
— Só acabo de expressar o enunciado mais simples e mais óbvio do Universo.
— E qual é esse enunciado?
Só existe um mundo.
— De acordo. Só existe um mundo.
E esse mundo é você.
— Pare com isso.
Você vai ter que cortar as amarras do eu. Não pode, pelo menos, tentar tirar os olhos do seu umbigo e olhar para fora, para a natureza que o rodeia? Olhar para essa cachoeira ininterrupta de realidade mágica?
— Tento olhar.
— E o que vê?
— Vejo um coqueiral no hemisfério sul.
— É você.
— Depois vejo Ana sair nua da banheira sob a cachoeira Bouma.
— É você.
— Reconheço a cabeça dela, mas não o corpo.
— Concentre-se.
— Vejo um planeta vivo.
— É você.
— Depois vejo um Universo aterrorizante com bilhões de galáxias e amontoados de galáxias.
Tudo isso é você.
— Mas quando olho para o Universo, olho também para trás, para a história do Universo. Na realidade, estudo acontecimentos que têm até bilhões de anos. Muitas das estrelas para as quais olho, e no instante em que olho para elas, já se transformaram há tempo em gigantes vermelhas ou em supemovas. Algumas já se transformaram em anãs brancas, raivosas estrelas de nêutrons e buracos negros.
— Você está contemplando seu próprio passado. É isso que se chama memória. Tenta lembrar de alguma coisa de que se esqueceu. Mas tudo é você.
— Sou um sistema caótico de luas e planetas, asteróides e cometas.
— Tudo é você, porque só há uma realidade.
— Mas eu lhe disse que estava de acordo com isso.
— Só há uma substância, só há uma matéria.
— E sou eu?
— É você.
— Então não sou pouca coisa.
— Só se você conseguir se dar conta disso, se conseguir se entregar.
— Correto. E por que é tão difícil assim?
— Porque você não quer renunciar ao seu pequeno eu, é simples.
— Até as soluções simples podem ser difíceis de levar a cabo. Por exemplo, é muito simples se suicidar.
— Você não é tão primitivo.
— Primitivo?
— Além do mais, isso supõe que você tenha um ego a perder.
(...)
— De certo modo, você vai ter que morrer. Tem que cometer esse pequeno ato ousado.
— Mas você não acabou de dizer que essa não seria a solução?
— Quando falo que vai ter que morrer, falo em sentido figurado. Não é você que tem que morrer. Essa idéia ampla demais de um “eu” é que tem que morrer.
— Estou fazendo uma confusão tremenda com o uso que você faz dos pronomes pessoais.
— Pode ser. Talvez precisemos de um novo pronome.
— Tem alguma sugestão?
— Com certeza já ouviu falar do pluralis majestatis.
— Claro. É quando um rei ou um imperador fala de sua excelsa pessoa denominando-se “nós”. Plural majestático, é assim que se chama.
— Acho que além dele necessitamos de um singular majestático.
— Para quê?
— Ao dizer “eu”, você apenas se aferra a uma idéia do ego que ainda por cima é falsa. Tente pensar em todo este planeta e, além disso, em todo o Universo de que este planeta é uma parte orgânica.
— Estou tentando.
— Pense em tudo o que você é.
— Estou pensando em tudo o que sou.
— E em todas as galáxias, em tudo o que explodiu há quinze bilhões de anos.
— Sim, em tudo.
— Então diga “eu”.
— Eu.
— Foi difícil?
— Um pouco. Mas foi divertido também.
— Pense em tudo o que você é. Depois diga em voz alta: “Isto sou eu!”.
— “Isto sou eu”...
— Não achou libertador?
— Um pouco.
— É porque você empregou a nova forma, singularis majestatis.
— Não diga!
— Acho que você está no caminho certo, Frank. (Jostein Gaarder. Maya, pág. 202-206)

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