No laboratório...

No laboratório...
-Ué. Não são nem meio dia ainda. Esse relógio tá errado.
-Ele não tá errado. Ele tá parado mesmo.
-Ué, e porque vocês não consertam ele?
-Porque ele não tá estragado. Você não prestou atenção no que eu falei? Ele tá só parado.
-E um relógio parado não é um relógio estragado?
-Não.
-Não?
-Não. O que tá estragado não cumpre a sua função. E o relógio cumpre perfeitamente a sua função.
-Claro que não! Ele não mostra a hora certa!!
-Mostra sim. Duas vezes por dia ele está tão certo quanto o relógio do seu celular, talvez até mais.
-...e pra que vocês querem um relógio que só acerta duas vezes por dia?
-Pra lembrar a gente que, mesmo que um experimento dê o resultado esperado, não quer dizer que a nossa hipótese como um todo está certa. Se até o relógio parado acerta de vez em quando, que dirá nossa hipótese que ninguém sabe se vai funcionar ou não. O relógio fica aí pra lembrar a gente que, se a gente não repetir o experimento, ele não vale muita coisa. Por um ponto de dados, passam infinitas retas. Por dois, passam infinitas curvas. E só lá depois do terceiro que a gente pode começar a ter alguma certeza.

-Caramba.
-Pois é.
-Uau.
-Mas não é só isso.
-Ah não?
-Você logo de cara olhou o relógio e falou que ele estava estragado. Sendo que você nem sabia para quê a gente usava o relógio. Se você não sabe qual a função de uma coisa, pra que ela de fato é usada, você não pode sair apontando o dedo falando que ela está certa ou não. Agora que você sabe pra que serve esse relógio específico nesse ambiente específico, você ainda acha que ele está estragado?
-Pra falar a verdade acho sim.
-Porque você tem uma ideia de como os relógios devem funcionar, o que eles devem fazer. E qualquer coisa que saia do que você espera, pra você, não serve. Mas na vida, na ciência, não é assim. A mesma coisa pode servir pra várias funções diferentes. Em algumas ela provavelmente vai estar errada: você não pode usar um martelo pra trocar uma lâmpada. Mas você pode usar um martelo como peso de papel, pra nivelar uma mesa, até como lenha para uma fogueira se precisar. O uso depende da necessidade. Imagina se um físico entra aqui e fala que a gente está errado por usar o modelo atômico diferente do que ele usa? Mas poxa, se o modelo que eu uso funciona tão bem, pra que que eu vou usar outro mais complicado? Imagina se eu chego pra um arquiteto ou um astrônomo e falo que ele não pode usar o modelo geocêntrico pra calcular onde o sol vai estar ao longo do dia? Eles vão rir da minha cara. Ninguém precisa usar a relatividade pra calcular a velocidade de um caminhão - quer dizer, a não ser que esse caminhão esteja a uma velocidade próxima à da luz, que nesse caso acho que ele já ultrapassou em muito o limite de velocidade de qualquer estrada.

-Uau. Mal entrei no laboratório e já aprendi muita coisa.
-Pois é.
-Mas, vem cá, vocês já tinham pensado nisso quando colocaram esse relógio aí?
-Na verdade não. Ele funcionava certinho até uns dois meses atrás. Mas aí ninguém teve a vontade e o tempo de colocar pilhas novas, e a gente só deixou ele ali.
-É, eu acho que quando a pessoa quer, ela consegue inventar explicação pra qualquer coisa, por menos sentido que essa coisa faça. E consegue inventar uma justificativa mirabolante e totalmente nada a ver para justificar até o que claramente está errado e não tem o menor motivo pra estar ali.
E o estudante de doutorado olhou de novo para a sua conclusão no artigo, olhou pro visitante, de volta pro artigo, e foi fazer mais um experimento.

(15/03/2016)

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