Sonho da nave espacial

A nave espacial surgiu sobre a cidade sem ninguém perceber. Um colega desapareceu. Depois apareceu de novo dizendo que tinha estado lá. Que bastava desejar ir pra lá que seríamos levados, e bastava desejar sair e seríamos devolvidos.

Estava procurando um lugar tranquilo com a mulher que eu estava no sonho, então desejei ir nós dois para lá. Fomos levados voando, de pé, atravessando prédios e estruturas. Fiz a pose em T, com os braços bem abertos, e vi a cidade lá em baixo, olhando para mim assustado. Finalmente chegamos num quarto arrumado, simples. Enfim poderíamos namorar. Mas toda hora alguma coisa interrompia a gente. Uma hora um robô bem rechonchudo perguntando se precisávamos de algo. Outra hora uma governanta explicando as regras do lugar, regras de convivência entre os hóspedes, apontando para uma placa, que entrava em detalhes sobre como, se houvesse um casal no quarto, as mulheres também deveriam sentir prazer. Outra vez ouvinos um choro de bebê vindo de fora, cortando totalmente o clima. Outra hora entraram algumas crianças e adolescentes, com idades em sequência, que eram de propriedade da nave e precisavam ser educadas. A cada vez desejei ficar a sós, um quarto a prova de som, etc, e os desejos foram sendo cumpridos. Tomava muito cuidado com a formulação do desejo, sempre desejando continuar seguro e com a minha parceira, e evitando uma linguagem vaga que levava a consequências terríveis em histórias de gênios.

Enfim, quisemos ir embora. Desejei isso, com cuidado, mas a governanta apareceu e disse que não podia ser tão explícito assim. Meu amigo tinha desejado acordar do lado de fora, por isso foi levado. Mas só desejar sair não ia funcionar. Aí comecei a achar que algo muito errado estava acontecendo.

Perdi a noção do tempo. Achei que estava lá a poucas horas, achei que estava lá a dias, achei que estava lá a anos. A memória picada não contava uma história única. Estava andando pelo corredor e no instante seguinte num quarto? Encontrava pessoas totalmente apáticas, e depois eram outras, conversadeiras e cheias de emoção no rosto. Queria me encontrar com uma pessoa, mas outra aparecia no lugar, e nada fluía tão bem.

Meu amigo aparece, aparentemente também prisioneiro daquele sistema esquisito. Ele logo comenta algo sobre tornozeleiras de contas, tipo um artesanato barato de praça, colocado após cada intervenção dos alienígenas sobre os "hóspedes". Que eu deveria prestar atenção em quem eu encontrava pelos corredores. Dou um passo e ouço um chacoalhar vindo de baixo. Tiro o tênis, e por debaixo da meia, contas prendendo meu pé esquerdo. Chacoalho a perna e uma dúzia de tornozeleiras aparecem. Dou um grito típico de final de episódio de Além da Imaginação. Quantas vezes eu teria passado por aquele tal procedimento? O que teriam feito comigo, e o que eu teria feito nos momentos que não me lembrava? As pessoas que encontrei estavam controlando a si mesmas ou estavam sob controle dos nossos anfitriões?

Começamos a bolar um plano de fuga. A nave já não estava mais flutuando sobre a cidade, mas se tornara um prédio com várias saídas. Quais seriam verdadeiras?

Chega a hora da rebelião. Arrombo portas dos quartos individuais, chamando os demais para a fuga. Eu e os colegas corremos pelos vários corredores, convocando todos a fugir. Pulo os degraus, pulo os corrimões, querendo fazer isso o mais rápido. A cada quarto, de uma a três pessoas que não esperava a convocação, algumas conhecidas, mas todas se animam a tentar. Logo somos dezenas, talvez duas centenas de pessoas correndo para o saguão de "entrada". Qualquer pessoa de fora acharia que ali é a sede de uma empresa moderna, com a entrada ampla, pé direito alto, vidraças nas paredes deixando a luz natural entrar e se combinar com a iluminação artificial sobre a portaria. Nem imaginariam a prisão.

A multidão não sabe para onde ir. A fuga por cima dá numa varanda sem rampa de descida, e os três que tentam pular caem pela última vez. A saída mais pra baixo, eu sabia, estava fechada. Como eu sabia? Lembrava de um sonho, ou uma simulação, como um videogame? Eu já havia tentado todos esses caminhos, na memória turva típica dos sonhos. E sabia o caminho mais certo.

Oriento que se concentrem em determinado saguão. Pelo canto do olho percebo funcionários do local, olhando atentos mas sem intervir, provavelmente armados. Naquela rota de fuga haveria mais soldados no caminho, esperando os primeiros sacrifícios a sair pelas portas e janelas? Talvez eu devesse esperar alguns outros irem na frente, para só então tentar fugir no meio da confusão. Mesmo que nem todos chegassem à cidade, era necessário tentar, nem que fosse para causar dor de cabeça em nossos captores.

No saguão, procuramos pontos fracos. A porta trancada, os vidros grossos. Jogo um banco nas janelas baixas, depois nas janelas altas, mas ele só quica e volta. Encontro uma fresta numa janela baixa, e percebo as três camadas do vidro. Se eu quebrar uma de cada vez talvez tenha sucesso. Enfio a perna de um banco sem jeito na fresta, peço para outro prisioneiro me passar um banco para me apoiar, e subo no apoio sem pernas que ele me oferece. Melhor do que nada. Consigo um ângulo melhor, estouro o primeiro vidro. O primeiro ar de liberdade.

Estando do lado de fora, consigo estourar mais duas janelas, e um pequeno fragmento plástico pendendo de cima não atrapalha a multidão saindo pelos buracos na parede. Atrás de mim, um jardim com arbustos, duas árvores, e um caminho que pode dar para a cidade, com alguma sorte. Não sei se iremos conseguir, mas não há sinal de resistência da empresa, e com toda certeza vale a pena tentar.

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